Tu Poema de Amor

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Inicio . Jorge de Lima INVENÇÕES DE ORFEU (OBRA COMPLETA)

INVENÇÕES DE ORFEU (OBRA COMPLETA)

 

Poemas relativos

 

I

Caída a noite

o mar se esvai,

aquele monte

desaba e cai

silentemente.

 

Bronzes diluídos

já não são vozes,

seres na estrada

nem são fantasmas,

aves nos ramos

inexistentes;

tranças noturnas

mais que impalpáveis,

gatos nem gatos,

nem os pés no ar,

nem os silêncios.

O sono está.

E um homem dorme.

 

II

 

Queres ler o que

tão só se entrelê

e o resto em ti está?

Flor no ar sem umbela

nem tua lapela;

flor que sem nós há.

 

Subitamente olhas:

nem lês nem desfolhas;

folha, flor, tiveste-as.

 

E nem as tocaste:

folha e flor. Tu - haste,

elas reais, mas réstias.

 

III

 

Qualquer voz alou-se

muito desejada.

Branco fosse o espaço

e ela ardente cor.

Quis o espaço a voz

a voz veio e ampliou-o.

Mas se não houvesse

propriamente voz...

Vamos nós supô-los:

dois sem seus sentidos.

Desejemos mesmo

dois incompreensíveis.

Bom nos ecoarmos

na voz recebida.

E o espaço esvaziado

povoá-lo de vez.

Amá-los tão sem

amada presença,

só com o coração

sem correspondência,

só com a vocação

do verso feliz.

 

IV

 

Numas noites chegamos à janela,

e as mandíbulas do ar tanto nos roem,

que os leitos rotos logo deliqüescem

com os nossos corpos complacentemente.

 

Certos dias olhamos o sol claro;

e a boca hiante das cores nos devora

carnes e sangues, poeiras de costelas,

que ficamos inúteis, sem matéria.

 

Essas bocas nos sugam noite e dia,

vigiando dia e noite nossas vidas

um minuto no espaço, menos que ai

de chumbo soluçado nos silêncios,

ou cal de fome longa, revelada,

na noite igual ao dia, de tão gêmeos.

 

V

 

Agora o sem senso

sorriso nos ares,

minha alma perdida,

os vales lá embaixo

de minhas lonjuras

de não existido,

parado nos antes,

nem sei de pecados,

nem sei de mim mesmo,

eu mesmo não sou

nem nada me vê;

ausentes palavras

não soam no vácuo

dos antes das coisas,

das coisas sem nexo,

nem fluidos. Só o Verbo

chorando por mim.

 

VI

Agora, escutai-me

que eu falo de mim;

ouvi que sou eu,

sou eu, eu em mim;

tocai esses cravos

já feitos pra mim,

suores de sangue,

pressuados sem poros

verônica herdada.

sem face do ser.

Embora; escutai-me,

que eu falo com a voz

inata que diz

que a voz não é essa

que fala por mim,

talvez minha fala

saída de ti.

 

VII

 

Alegria achareis neste poema

como poema ilícito, como um

corpo casual ou vão, como a memória

dura e acídula, como um homem se

conhece respirando, ou como quando

se entristece sem causa ou se doente,

ou se lavando sempre ou comparando-se

às dimensões das coisas relativas;

ou como sente os ombros de seu ser,

transmitidos e opacos, e os avós

responsabilizando-se presentes.

 

São alegrias rápidas. Lugares,

reencontrados países, becos, passos

sob as chuvas que não vos molharão.

 

 

 

VIII

Se falta alguém nesses versos

pele vento interminável,

pelas arenas de estátuas,

sucedam-lhe os cegos olhos

sacudidos pelos medos,

mãos de chuvas lhe inteiricem

o corpo com algas remissas

e com matérias tranqüilas

tão soturna como os poços,

exasperados invernos,

ombros de escova comida,

as asas secas caídas,

ante seus netos calados;

e incorporem-se a esse alvitre

esse sabor de cortiça,

essas esponjas morridas,

essas marés estanhadas,

essas escunas de espáduas

estritamente fechadas

como casas de abandono,

restringem-se os conciliábulos,

certos sigilos de pez,

certas coisas enlutadas,

refúgios, dramas ocultos,

pois as rosas são de trapos

e os fios menos que teias,

menos que finos agora,

e as camisas sem os pêlos

enterrados nas ilhargas,

vestem enganos e punhos

e crimes em vez de adegas,

mas tudo em vão, mesmo as plumas,

mesmo os ausentes e as vozes

aderidas a fragmentos

aí moram degredadas,

listrando as grades, de faces

que não conhecem espelhos

 

 

 

IX

Numa hora perdida cantos doeram. Os desejos

E flores despenteadas, flores largas e a barbárie

e inconfidentes quase abominadas dos corpos.

por oculta paixão, se intumesceram. E a relatividade

do espírito

Lírios eram pilares de cristal sob o cerco

subindo para as aves; então dardos da matéria.

desceram sobre os mais amados colos

cantando amor com seus sentimentos.

Canção melhor. Mais consentimentos puros olhos. Eu

sei de cor os rebanhos, e olho o mundo.

Tudo contém pequenas doces máscaras.

Mas da selva selvagem desce o pranto

dos que mastigam suas próprias fomes,

sem saliva de pão, e o gosto ausente.

Ninguém consegue assim amar os lírios.

E esse amor é amaríssimo e adstringente

com a memória das dores engolidas.

 

X

Vós não viveis sozinhos

os outros vos invadem

felizes convivências

agregações incômodas

enfim ambientalismos,

e tudo subsistências

e mais comunidades;

e tantas ventanias

acotovelamentos,

desgastes de antemão,

acréscimos depois,

depois substituições,

a massa vos tragando,

as coisas vos bisando;

os hábitos, os vícios,

as moças embutidas

mudando vossas cartas;

sereis administrados

no sono e nos pecados,

vós mapas e diagramas

com várias delinqüências,

e insanidades várias,

dosando o vosso espaço,

pesando o vosso pão

de tempos racionados;

e não tereis vivido

e não tereis amado,

porém sereis morrido.

 

XI

 

Éreis vós Tiago, Diogo, Jaques, Jaime?

Clodoveu ou Clodovigo?

Éreis vós por acaso eles?

Éreis vós aqueles nomes,

estes, e os demais já mortos,

os mortos tão renovados

nós mesmos sempre chamados

Lútero, Lotário, otário,

sim otário tão singelo,

tão puro de todo o mal,

relativo, universal.

Éreis vós Tiago, Diogo, Jaques, Jaime?

Dizei-me se acaso vós

éreis eles ou voz sou

de algum avo tão otário,

tão eu mesmo como voz,

como poema de outros vários.

 

XII

 

O simples ar

de uma só corda

em curta raia,

mão de menino,

punhado escasso,

ar perfumado,

sem o alvoroço

dos vendavais;

anjo acolhido

em róseo céu

abrigo instante,

pranto lavado,

chorar em ti

de arrependido,

subir teus vales,

amar teu pólen,

nunca escapar-me

de tuas pétalas

cair com elas.

 

XIII

 

Uma janela aberta

e um simples rosto hirto,

e que provavelmente

nela se debruçou;

e nesse gesto puro

do rosto na janela

estava todo o poema

que ninguém escutou;

só a janela aberta

e o espaço dentro dela

que o tempo atravessou.

 

XIV

 

O contro era um dia,

um dia futuro,

e dentro do dia

incluído o conforme,

e dentro o que foi

porque fora isso

se tal não se dera,

se o mundo parasse

e o espaço se excluísse;

se a pedra não fosse

o símbolo que era

pois tudo era um dia,

um dia sem dia,

porém com o poeta

que um dia seria.

 

 

 

XV

 

De manhã estrelas verdes

na inocência do ar coleado,

intranqüilas e veementes.

Ao zênite e areia em sede,

asas das hastes pendidas,

as nuvens-castelas altas

como painas amealhadas.

De tarde a visão das velas,

nuvens baixas sobre as verdes

rosas das hastes fictícias;

os desejos dissolvidos

repousam abertamente;

e esse deserto de vozes

e estes cabelos perenes

de seus nervos para os dramas.

Mas se as palmas fossem isso,

as fontes seriam pratas,

e as pratas seriam o

puro sonho de quem vive.

Todavia o sonho é como

as palmas dessas palmeiras.

Eis as palmas.

 

XVI

 

Os dois ponteiros

rodam e rodam,

mostrando o horário

irregular.

Horas inteiras

despedaçadas,

horas mais horas

desmesuradas.

Com seu compasso,

lá vem a morte

pra teu transporte,

e com os dois braços:

esta é tua hora,

levo-te agora.

 

 

 

XVII

 

Um te exalou

nessa incidência:

céu, terra, mar;

impermanência.

Outro te andou

te indo e te vindo

pra te juntares,

te convergindo

Quem te volou,

esse te deu

o sono no ar.

Esse te entoou

e te nasceu

sem te acordar.

 

 

 

XVIII

No dia seguinte:

chamamos de terra,

o poema te leva

te dana, te agita,

te vinca de cruzes,

te envolve de nuvens.

Quem sabe aonde vai

parar no outro dia?

 

XIX

Roteiros vencidos

compassam a festa:

a noiva está fria

no véu lamentado.

Três potros desfraldam-se

três faces transcorrem

no coche morrido,

em vão galopado.

O nome do noivo?

O nome da noiva?

O nome do diabo?

Três nomes corridos,

três sombras penadas

no drama calado.

 

XX

Aqui e ali

me encontrareis,

entre um poema

ou em seu curso,

além e aquém,

oculto e claro,

vivo ou demente,

ou mesmo morto,

ou renascido

como meu sósia,

intermitente,

ferida tórpida.

pulso de febre,

nesse cavalo,

naquela tinta,

naquele poema

quase alicerce,

quase esse infante,

esse anjo surdo.

Ia esquecendo:

eu e meu sósia

somos momentos

entrelaçados.

Ei-lo veemente

volta a seu palco,

sobe a uma origem,

desce de novo,

envolto ou nu,

esse homem gêmeo,

jamais verdugo,

mas palma incerta,

sendo meu pai,

meu filho e neto

e aquele longe

porém limiar,

malgrado e clâmide

aberta e alípede,

foi argonauta,

podia se-lo

se esse jacinto

não fosse canto,

canto de galo

crepuscular,

profusamente

cedo se oculta

por essas laudas

sem perceber

seu fácil ímpeto

ante a palavra

visualizada;

mas de repente

desaparece.

Agora eu surjo

naquela esquina,

naquele pórtico

falam de mim;

ouço transido

esses vocábulos

desconhecidos,

emerjo em rios

que vão passar,

mergulho em rumos

acontecidos,

sucedo em mim,

depois vou indo

fundo e arrastado

na correnteza

que é de repentes.

Morto incorrupto

guardo meus naipes

mais pressentidos,

intercadentes,

desordenados,

não há atavios,

não há disfarces,

dissolução

dos prantos largos

manando laivos,

lanhando aspectos;

desacredito-me

perante os leves,

nem sabedor

de alas longevas,

se o porvindouro

é puro exórdio

precocemente

desencantado;

se os seus presságios

remanescidos,

salvo-condutos

manifestados;

correm desvios

vulgares trilhos,

que todavia

prossigo em mim,

minha progênie,

uns dementados,

outros co-réus,

reconciliando-me

com os mutilados

e este glossário

que é de meu sósia;

abastecido

alego dores,

crescentes cargas;

me patenteio,

fico exaltado

sem parecer;

depois me espreito

na curva adiante,

simbolizado,

metade em mim

inda nascendo,

a outra metade

superlotada;

então me sano

excluindo as nucas

executáveis;

não evidentes

nem aberrante

me envolvo de alma,

doce alimária

com alguns anexos

aparelhados

para colher

belas paisagens

e outros petrechos

do sósia amado;

quero sofrer-me,

quero imitar-me,

fico enpunhado

meu corpo no ar,

dependurado,

meio aderido

a alguns palhaços

insimulados,

portanto, instáveis,

muito insossos,

muitos até

beatificados;

ventos corteses

bem-parecidos

vêm agitar

nosso espantalho,

enquanto as aves

canoramente

se desaninham

de nossos braços,

ossos atados

a chão deitados,

chãos contestados

por figadais,

mas afinal

chãos estrelados

de algumas plantas

ambicionadas

por umas moças

que andando sós

se despetalam

e virar brisas,

fagueiras asas,

pelas janelas

passam nos vidros,

vão aos relógios

param os cucos,

e a vila fica

inteiriçada.

dormindo dentro

desse poema

recomeçado

por novo sósia.

 

XXI

As portas finais,

os cantos iguais,

os pontos cardeais,

sempre obsidionais.

Os tempos anuais,

as faces glaciais,

as culpas filiais

sempre obsidionais.

Os dois iniciais,

as dores tais quais,

os juízos finais

sempre obsidionais.

 

XXII

Era uma vinda,

dadas as luzes,

dadas as faces

que ali se achavam,

nenhuma espúria,

nenhuma enferma,

dadas as cores,

dadas as falas

que ali se achavam;

dadas as provas

dessas presenças

deu-se o milagre

em aços doces,

em gumes brandos

em chamas graves;

formou-se um gênio

pentangular

que começava

com a estrela Vésper,

riscando a noite

sem se acabar;

formou-se um lírio

na suave treva,

gerou-se um grito

de tantas vozes,

criou-se um fogo

correspondente,

jorrou-se um pranto

desabitado.

Era uma tarde:

ninguém sabia

o que no mundo

ia acabar.

Sei que houve portas

escancaradas,

sei que houve apelos

antiencarnados.

E houve um dilúvio,

mas era um fogo

desabrochado.

 

XXIII

 

Quando menos se pensa

a sextina é suspensa.

E o júbilo mais forte

tal qual a taça fruída,

antes que para a morte

vá o réu da curta vida.

Ninguém pediu a vida

ao nume que em nós pensa.

Ai carne dada à morte!

morte jamais suspensa

a taça sempre fruída

última, única e forte.

Orfeu e o estro mais forte

dentro da curta vida

a taça toda fruída,

fronte que já não pensa

canção erma, suspensa,

Orfeu diante da morte.

Vida, paixão e morte,

- taças ao fraco e ao forte,

taças - vida suspensa.

Passa-se a frágil vida,

e a taça que se pensa

eis rápida fruída.

Abandonada, fruída,

esvaziada na morte,

Orfeu já não mais pensa,

Calado o canto forte

em cantochão da vida,

cortada ária, suspensa.

Lira de Orfeu. Suspensa!

Suspensa! Ária fruída,

sextina artes da vida

ser rimada na morte.

Eis tua rima forte:

rima que mais se pensa.

 

XXIV

 

A sextina começa

de novo uma ária espessa,

(sextina da procura!)

Eurídice nas trevas,

Ó Eurídice obscura.

Eva entre as outras Evas.

Repousai aves, Evas,

que a busca recomeça

cada vez mais obscura

da visão mais espessa

repousada nas trevas

Ah! difícil procura!

Incessante procura

entre noturnas Evas,

entre divinas trevas,

Eurídice começa

a trajetória espessa,

a trajetória obscura.

Desceu à pátria obscura

em que não se procura

alguém na sombra espessa

e onde sombras são Evas,

e onde ninguém começa,

mas tudo acaba em trevas.

Infernos, Evas, trevas,

lua submersa e obscura.

Aí a ária começa,

e não finda a procura

entre as celeste Evas

a Eva da terra espessa.

Eurídice, Eva espessa,

musa de doces trevas,

mais que todas as Evas -

musa obscura, Eva obscura;

sextina que procura

acabar, e começa.

 

XXV

A musa A barba tão preta que era azul,

morta que as amantes tão ruivas que eram nulas

vem de Amara onze e mais uma, numa só

outros morta, em alma, sem cadáver, sem

livros tumba, e que amara - morta, morta, morta.

 

XXVI

Sombra encantada, declinara

num vago dia, incerto dia.

Eis uma deusa, pelos gestos,

por sua dança, sua órbita.

Era preciso compreendê-la,

mas quando nós a avizinhávamos,

a deusa arisca recuava.

Se nós recuávamos, voltava

ao nosso encontro, sem tocar-nos.

Então corríamos, devassos,

quase enlaçando-a: ela fugia.

Era uma deusa pelos modos

com que mentia e se ausentava.

Mas outro dia, vago dia,

abrutamente a aprisionamos.

O que tu és, deusa, ignoramos,

mas desejamos, qualquer coisa

fazer de ti, terror ou júbilo

ou nossa vênus favorável

ou nossa esfera de vocábulos.

Ela chorava, não queria;

e o pranto logo dissolvia.

Então descemos, ventre abaixo

e renascemos de seu sexo,

- trânsito virgem de palavras.

Era uma deusa, pela fúria

com que nós todos a ultrajamos.

Era uma deusa e não sabíamos

se cada qual mesmo a violou.

Era uma deusa, pela dúvida

que em cada um de nós, deixou.

 

XXVII

Contemplar o jardim além do odor

e a mulher silenciosa entre semblantes,

e refazê-los todos, todos antes

que o tempo condenado os atraiçoe.

Porque eu quero, em memória refazê-los: À procura da

flor longínqua, mulher, não pertencida, face perdida

substância inexistente, móvel vida,

intercessão de nadas e cabelos.

E meus olhos ausentes me espiando

entre as coisas caducas e fugaces

a minha intercessão em outras faces.

Orfeu, para conhecer teu espetáculo,

em que queres senhor, que eu me transforme,

ou me forme de novo, em que outro oráculo?